
João tinha certeza de uma coisa: sua paz de espírito estava sob ataque. E o culpado, segundo ele, era ninguém menos que o próprio Capiroto. Para qualquer lado que olhava na vida moderna – o caos do trânsito logo de manhã, as notícias apocalípticas no jornal, a enxurrada de notificações do celular tarde da noite – tudo parecia fazer parte de um plano maligno arquitetado para minar sua tranquilidade. Não era azar ou estresse comum do dia a dia; na cabeça de João, estava em curso uma guerra secreta pela sua sanidade mental, uma verdadeira teoria da conspiração sobrenatural.
Ele percebia sinais por toda parte. Se perdia o ônibus por um minuto, não era coincidência: devia ser o capeta cutucando o motorista para acelerar. Quando a internet caía bem na hora de enviar aquele e-mail urgente do trabalho, João sentia o dedo do demônio nos cabos do Wi-Fi. Até mesmo uma música chiclete que grudava em sua mente sem pedir licença parecia ser tática de tortura psicológica infernal. Com cada insônia repentina às 3h da manhã e cada ansiedade sem explicação aparente, mais ele se convencia: o Capiroto conspirava nas sombras, apertando botões e puxando alavancas invisíveis para atormentá-lo diariamente.
Na imaginação fértil de João, sua mente transformava-se em um campo de batalha épico digno de Tolkien. As preocupações diárias viravam monstros e orcs marchando sob as ordens do Senhor das Trevas do Estresse. Ele visualizava seu cérebro como uma fortaleza sendo cercada – de um lado, as forças sombrias da insônia e do medo; do outro, ele, um herói improvável, tentando defender o último reduto de paz. Cada boleto atrasado era um dragão cuspidor de fogo ameaçando suas economias; cada mensagem do chefe fora de hora surgia como um Nazgûl dando rasantes nos céus da sua tranquilidade. Podia ser um exagero (e era mesmo), mas essa narrativa fazia as agruras do cotidiano ficarem até interessantes – afinal, era bem mais emocionante culpar um demônio conspirador do que aceitar que faz parte da vida adulta lidar com essas chatices mundanas.
Convencido de que estava travando uma guerra invisível, João decidiu que não seria uma vítima passiva. Se o Capiroto declarara guerra, ele iria contra-atacar com armas nada convencionais. A primeira delas? O senso de humor. Numa noite em que sentiu a já familiar angústia apertar o peito do nada (na certa, obra do tinhoso tentando estragar seu sossego), João resolveu rir na cara do perigo – literalmente. Começou a gargalhar sozinho na sala, para a surpresa do gato que dormia no sofá. Imaginou o diabo ali, sentado ao seu lado, e gritou: “Vai catar coquinho, capeta!”. Em seguida, passou a inventar piadas mentais sobre toda aquela situação: visualizou o Capiroto escorregando numa casca de banana enquanto tentava aparecer de forma ameaçadora, depois o imaginou usando pantufas de unicórnio ao tocar terror em suas noites insones. Quanto mais João ria dessas imagens absurdas, menos poder aquelas sombras pareciam ter. O medo cedia lugar ao riso, e ele percebeu que não dá para o terror vencer quando se está ocupado dando risada.
O humor virou seu escudo diário. Quando a ansiedade atacava de manhã cedo, João colocava uma música boba e cantava desafinado no chuveiro, imaginando que sua preocupação era um monstro desengonçado dançando tango com um pato de borracha. Ele fazia caretas no espelho, zombando dos próprios pensamentos negativos. E, por incrível que pareça, essa tática meio louca funcionava: rir de si mesmo – e do suposto demônio conspirador – aliviava a tensão. Era como se ele dissesse ao inimigo invisível: “Te levo a sério não, meu filho. Aqui você vira piada.” Até o Capiroto, caso existisse mesmo naquela sala, ficaria desconcertado diante de tanta tiração de sarro. João se sentia temporariamente vitorioso – o bobo da corte derrotando o rei das trevas com uma simples gargalhada.
Só que algumas batalhas exigiam medidas ainda mais drásticas. Houve uma madrugada especialmente difícil em que João acordou suando frio, após um pesadelo daqueles bem clichês (sonhou que estava nu no meio do trabalho – certamente uma peça do coisa-ruim para abalar sua confiança). Cansado de jogar apenas na defesa, ele decidiu apelar para uma estratégia tão absurda e surreal que deixaria qualquer um de queixo caído e a mente paralisada. Se o humor era sua espada, agora vinha a granada do nonsense.
À meia-noite, munido de uma criatividade quase insana, João montou um verdadeiro ritual de contra-ataque. Vestiu um capacete de papel-alumínio para “bloquear as frequências infernais” (por via das dúvidas). Pegou a vassoura da cozinha e a empunhou como se fosse uma espada lendária. No rosto, pintou dois bigodes com pasta de dente, parecendo um guerreiro tribal… ou um palhaço de guerra, talvez. Em volta de si, organizou um círculo com objetos aleatórios da casa: um patinho de borracha, três controles remotos, uma meia colorida e um boneco do Yoda – tudo que ele julgou que pudesse confundir o capeta ou sabotar qualquer espionagem da sua mente. Para coroar o plano mirabolante, abriu o notebook e colocou um áudio de canto gregoriano misturado com risadas de hiena (uma trilha sonora no mínimo perturbadora).
Assim preparado, João começou a executar sua “cerimônia” de revanche: rodopiou no meio da sala balançando a vassoura e cantando uma mistura de cantiga de roda com palavras em latim macarrônico que inventou na hora. Parecia o feiticeiro mais desajeitado do universo, ou então alguém participando de um concurso de dança extremamente esquisito.
A cena beirava o surreal. Se houvesse uma câmera escondida, ninguém acreditaria: um adulto de pijama e capacete prateado, brandindo uma vassoura enquanto entoava cantorias indecifráveis – tudo isso sob o olhar solene de um patinho de borracha no chão. Mas, de certa forma, algo poderoso aconteceu. No meio daquele caos voluntário, João não sentiu mais medo algum – nem ansiedade, nem a tal presença opressora que ele imaginava espreitando nos cantos escuros. Era como se ele próprio tivesse se tornado mais assustador (ou pelo menos mais maluco) do que qualquer demônio poderia ser. Talvez o Capiroto – se é que estava ali observando aquela loucura – tenha ficado tão perplexo que largou suas armas psíquicas por um instante, sem saber como reagir. Afinal, não estava no script das trevas precisar enfrentar um mortal disposto a dançar Macarena de capacete de alumínio à meia-noite.
Quando finalmente terminou sua performance extravagante, ofegante e tonto de tanto rodar, João percebeu que um silêncio reconfortante envolvia a casa. Nenhum sussurro ameaçador, nenhum pensamento galopante – só o barulho do seu próprio riso, primeiro nervoso e depois genuinamente aliviado. A paz de espírito, aquela velha teimosa, deu as caras de novo. Ele se jogou no sofá, ainda de capacete e com pasta de dente secando no rosto, e caiu na gargalhada até a barriga doer. Riu do absurdo que acabara de fazer. Riu da imagem mental do diabo fugindo dele com medo de “pegar doença de doido”. Riu porque, no fim das contas, tinha vencido o inimigo mais uma vez – nem que fosse pela pura exaustão após a batalha mais maluca de sua vida.
Na manhã seguinte, João acordou com uma espécie de ressaca cômica e um leve gosto de menta na boca, mas sentindo-se estranhamente vitorioso. Ele sabia que, se contasse a alguém, ninguém acreditaria na sua teoria conspiratória – muito menos no método inusitado que usou para se defender. Mas quem se importa? Funcionou. Pelo menos por enquanto, o Capiroto conspirador havia batido em retirada, derrotado pelo poder combinado do riso e do absurdo. A guerra pela paz de espírito de João ainda poderia ter outros capítulos (afinal, sossego de adulto vive escapando e boletos nunca deixam de chegar), mas naquele dia ele desfrutou de um raro e merecido triunfo. E se o diabo resolvesse tentar de novo, já sabia: iria encontrar um adversário imprevisível, armado até os dentes de piadas ruins, chapéus de alumínio e o que mais fosse preciso para proteger sua tranquilidade.
Paulo
Cena e cenário completamente visualizados. Rsrsrs